PARECER SOBRE A COMPETENCIA DO CONTRAN EM ALTERAR OU MODIFICAR A LEI.
TEMA: NECESSIDADE OU NÃO DE JUSTIFICATICAR A NÃO ABORDAGEM NO AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO.
Neste artigo proponho uma reflexão
sobre os aspectos legais sobre a competência do Contran no que diz respeito às
alterações recentes sofridas pela Lei
9.503/97 (CTB).
Obviamente que não pretendo aqui
esgotar o assunto tamanho sua complexidade associada às várias possibilidades
de interpretações as quais as leis estão sujeitas, o que é legal e saudável
para o bom debate, todavia, a proposta aqui é contribuir para formação de
opinião para aqueles que buscam sedimentar para fundamentar suas manifestações.
Para início da reflexão trago a baila então a
nova redação dada à matéria (abordagem) pelo Conselho Nacional de Trânsito –
CONTRAN por intermédia da Resolução 985/2022 a qual aprova o Manual Brasileiro
de Fiscalização de Trânsito – MBFT.
Nesta nova edição, ou melhor, nesta
consolidação dos Volumes I e II do MBFT, o CONTRAN inovou ao dispensar o agente
da autoridade de trânsito de justificar os motivos os quais o impediram de
realizar a abordagem do veículo, vejamos:
Item
7. Autuação:
(...)
O
agente da autoridade de trânsito, sempre que possível, deverá abordar o
condutor do veículo para constatar a infração, ressalvados os casos em que a
infração poderá ser comprovada sem a abordagem. Para esse fim, o Manual
estabelece as seguintes situações:
● Caso 1: “possível sem abordagem” -
significa que a infração pode ser constatada sem a abordagem do condutor, sendo
desnecessária a justificativa no AIT quanto ao motivo de não ter sido abordado.
(sem grifo no original)
É justamente
aí, que entendo, residir a ilegalidade da nova redação trazida pelo MBFT a qual
contraria a legislação, ou seja, a Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito
Brasileiro – CTB, especificamente em seu artigo 280 ao passo que é categórico
ao exigir a abordagem e em casos em que não for possível, deve ser justificado,
vejamos:
Art.
280
(...)
IV -
o prontuário do condutor, sempre que possível;
(...)
§
3º Não sendo possível a autuação em flagrante, o agente de trânsito relatará o
fato à autoridade no próprio auto de infração, informando os dados a respeito
do veículo, além dos constantes nos incisos I, II e III, para o procedimento
previsto no artigo seguinte.
Observamos que o texto legal prevê como regra geral a
abordagem, todavia, em sua inteligência trouxe para os casos que a abordagem
não seja possível, procedimentos nos termos do § 3º do próprio art. 280, vejamos:
Art.
280
(...)
§ 3º Não sendo possível a autuação em flagrante, o agente de
trânsito relatará o fato à autoridade no próprio auto de infração, informando
os dados a respeito do veículo, além dos
constantes nos incisos I, II e III, para o procedimento previsto no artigo
seguinte.
Por oportuno,
não havendo a lei prevista expressamente a dispensa automática da motivação da
não abordagem, não pode o CONTRAN fazê-lo através de resolução, como é o
presente caso, e aqui cito a AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.998 do STF:
Ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO A DIVERSOS DISPOSITIVOS
CONSTANTES DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – CTB. PREJUDICIALIDADE DA ANÁLISE
QUANTO AO ART. 288, § 2°; IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO COM RELAÇÃO AOS ARTS. 124,
VIII; 128 E 131, § 2°. APLICAÇÃO DE INTEPRETAÇÃO CONFORME AO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ART. 161: IMPOSSIBILIDADE DE ESTABELECIMENTO DE SANÇÃO POR PARTE DO CONSELHO
NACIONAL DE TRÂNSITO - CONTRAN. CONTRARIEDADE AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL:
INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO “OU RESOLUÇÕES DO CONTRAN” CONSTANTE DO
CAPUT DO ART. 161. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
(...)
O SENHOR
MINISTRO EDSON FACHIN – (...) Ressalto, entretanto, que o
reconhecimento do espaço normativo conformador conferido ao CONTRAN pelo Código
de Trânsito Brasileiro não autoriza, por evidente, que o Conselho expeça atos
normativos que extrapolem os limites do arcabouço legal pertinente. Sendo
assim, entendo que, para que se verifique a consonância do parágrafo único do
art. 161, da Lei nº 9.503/1997, com o Texto Constitucional, é preciso que seja
conferida ao dispositivo interpretação conforme segundo a qual é defeso ao
CONTRAN estabelecer, por meio de resoluções, novas penalidades e sanções.
O SENHOR
MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (...) Também estou
acompanhando Sua Excelência no art. 161, que considero constitucional, e dou
interpretação conforme a Constituição ao parágrafo único, apenas para
estabelecer que, por ato administrativo secundário, não é possível inovar na
ordem jurídica – como Sua Excelência explicitou –, pedindo vênia à divergência.
Diante do
exposto podemos apurar que não há competência do CONTRAN em criar normas ou
modificá-las visto que afrontaria ao princípio da legalidade na forma do art.
37 CFRB e também ao caput do art. 2º e seu Inciso
I da Lei 9.784/99.
Voltando ao CTB
e sua finalidade a qual está esculpida no seu art. 1º parágrafo 5º a qual é salvar vidas, vejamos:
Art. 1º (...)
§ 5º Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao
Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida,
nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente.
Destaco então
que a abordagem do condutor pelo agente de trânsito no momento da confecção do AIT possui algumas funções de suma
importância, destaco algumas:
· Fazer cessar a prática infracional;
· Contribuir para a segurança viária;
· Identificar o real infrator e assim
impedir uma possível indicação fraudulenta posterior;
· cientificar o acusado acerca da
imputação que lhe cabe;
· sensibilizá-lo da nocividade e
ilicitude da conduta praticada; e
· efeito pedagógico a todos os demais
condutores que transitam pelo local e presenciam o procedimento (abordagem)..
Assim a
abordagem teria efeito diretamente na eficiência e eficácia da atuação do poder
público na coibição de práticas anti-sociais e que ponha em risco a segurança
dos usuários das vias públicas, bem como para dirimir possíveis erros ao fazer
as anotações dos caracteres da placa do veículo.
Com relação
a função da abordagem, Prado nos esclarece que[1]:
A autuação da infração de trânsito será efetivada
incontinenti e, via de regra, deve ser com abordagem ao infrator, para que o
caráter educativo decorrente da interação entre administrador e administrado,
produza efeitos imediatos na revisão de comportamento, [...].
Se de um lado o legislador propiciou que, casualmente a
infração pudesse ser autuada quando o infrator não estivesse presente no
veículo, ou que, mesmo conduzindo-o, viesse com sua ação a dificultar a
abordagem, por outro, ao exigir a justificativa como condição de validade, se
pode afirmar que intencionou sabiamente o fim da “canetada silenciosa e
invisível”.
Para que a administração pública demonstre sua firme
disposição em não transformar a exceção em regra, deve prover todos os meio
necessários e agir prontamente, de forma ostensiva, para que a ação possa
irradiar efeitos ao infrator e a quem mais a presencie.
É de fácil compreensão que ao
alisarmos o texto legal, art. 280 do CTB, encontramos nele o comando normativo expresso o qual determina a motivação do ato administrativo para esclarecer
a não abordagem.
Dessa forma, resta cristalino que o agente da autoridade de trânsito, como regra geral,
deve promover a abordagem, a qual não precisa acontecer apenas nas situações em
que “não for possível”, conforme registra o texto expresso da norma.
Em síntese, com a leitura do texto legal, não nos resta dúvidas de que a abordagem deve ser feita em regra,
porém não é obrigatória.
No entanto, é necessário que o agente motive no próprio auto
de infração o ato administrativo de autuação de trânsito sempre que não for
possível a abordagem, conforme determina a legislação vigente, nos termos do
dispositivo anteriormente transcrito.
Cumpre realçar ainda o
entendimento de Prado[2]
quanto a justificativa da não abordagem:
A falta de abordagem sem justificativa expressa no campo
próprio do Auto, sua aposição inconsistente, ou incoerente, constituem causas
de nulidade por descumprimento de uma formalidade normativa.
Pode também ser considerada como estreitamento arbitrário do
direito de defesa em toda sua amplitude, negando-se o mandamento
constitucional, pois obstaculiza o infrator, por exemplo, ao exercício do seu
direito de visar o auto, conforme previsto no inciso VI do artigo 280.
A autuação de uma infração de trânsito, é um ato
administrativo e, portanto, exige, além da expressa competência do agente que a
materializa, a obediência ao rigor formal definido nas normas de trânsito e
consagrado nas regras gerais de direito.
Ao se estipular que a autuação da infração, em princípio
será em flagrante, isso no âmbito do direito, implica a imediata ação e
documentação do fato.
Assim,
reiterando o entendimento antes descrito de que a abordagem é a regra, sendo
dispensada apenas nas hipóteses em que houver motivação justificando.
Cito o
Parecer n° 032/2005, do Conselho Estadual
de Trânsito de Santa Catarina, apesar de ser superado pela Res. 985/2022 CONTRAN
(MBFT), o qual entendo de forma equivocada pelos motivos acima expostos, porém o cito para que resgatem a finalidade da
abordagem em detrimento a função do agente de trânsito, vejamos:
Em diversas oportunidades, este Conselho já se manifestou no
sentido de que o agente da autoridade de trânsito tem o dever de envidar os
esforços necessários para, sempre que possível, promover a autuação em
flagrante do infrator, sob pena de desvirtuar sua atuação, que deve ser sempre
ostensiva, não podendo desviar-se da sua real finalidade que outra não é senão
garantir a segurança pública e a fluidez do trânsito viário. Assim, não
sendo levada a efeito a autuação em flagrante e não sendo mencionado o fato na
própria peça acusatória, a teor do que dispõe o §3º do art. 280 do CTB, a
insubsistência do registro é latente. (sem grifo no original).
Vale ressaltar que todo ato
administrativo deva ser motivado de legalidade, acarretando a falta desta
motivação, consoante douto ensinamento de MELLO, sua nulidade:
Se a regra de direito enuncia que dado ato pode (deve) ser
produzido quando presente determinado motivo (isto é, dada situação de fato),
resulta óbvio ser condição de lisura da providência adotada que efetivamente
tenha ocorrido ou seja aquela situação pressuposta na norma a ser aplicada. Se
o fato presumido pela lei não existe, sequer irrompe a competência para expedir
o ato.
Verifico
no caso em concreto a improbidade do texto trazido pela Resolução 985/2022
– MBFT, uma vez que o art. 280 não dá margem para interpretação de forma
diferente para que os agentes da autoridade de trânsito não justifiquem/motivem
de forma clara e objetiva os motivos que o impediram de realizarem a devida e
necessária abordagem nos casos em que a fiscalização e o flagrante ocorrem na
sua presença física, excluindo-se os caos por demais óbvios a exemplo da
fiscalização de trânsito por vídeo monitoramento.
Outro não pode ser meu posicionamento
senão pelo entendimento da ilegalidade do item “7 – Autuações – Abordagem –
Caso 1” do MBFT, o qual foi aprovado pela Resolução 985/2022 do CONTRAN, tendo
em vista que apenas o legislador ordinário poderia dispensar tal motivação por
parte dos agentes por meio de aprovação de projeto de lei ou de medida
provisória, não tendo o CONTRAN competência para fazê-lo.
Assim,
o auto de infração que subsidiária a autoridade de trânsito para a aplicação da
penalidade cabível (advertência, multa, suspensão ou cassação do direito de
dirigir) estará irregular por não conter informações obrigatórias.
Como
efeito e se considerarmos que o ato praticado pelo agente de trânsito ao deixar
de justificar os motivos reais que o impediram de realizar a abordagem for
considerado como irregular, ou seja, ilegal, então tudo que vier dele deve ser
considerado nulo, em obediência a teoria do fruto da árvore envenenada.
Para o doutrinador Eugênio Pacelli (2020, p.273), a teoria
nada mais é que a “simples consequência
lógica da aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas”.
Neste sentido [i]Guilherme
Madeira Dezem alega que a Teoria da Árvore Envenenada corresponde ao dizer que:
“as provas ilícitas acabam por contaminar
todas as demais provas que dela sejam consequências”.
A
Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (em inglês, “fruits of the poisonous
tree”) é vista como metáfora legal a qual faz comunicar o vício da ilicitude de
provas que venham a ser obtidas por meio de violação das regras de Direito
Material em relação a todas as demais provas fundadas a partir daquela. Sendo
assim, tais provas são vistas como ilícitas por derivação.
Como
se vê, toda e qualquer procedimento que se funde em prova irregular, é
considerado fruto de uma árvore envenenada e deve ser extinto e arquivado,
devido a vedação legal de uma prova ilegal produzir efeitos em processo
administrativo, devendo o presente processo administrativo ser arquivado, pois
as provas são ilegais e nulas de pleno direito.
E sendo
considerado ato nulo praticado pela administração pública a decretação da nulidade gera efeitos ex tunc, ou seja, retroage a sua origem.
Conforme
leciona José dos Santos Carvalho Filho, a forma para ser considerada válida:
"deve compatibilizar-se com o que
expressamente dispõem a lei ou ato equivalente com força jurídica. Desse modo,
não basta simplesmente a exteriorização da vontade pelo agente administrativo;
urge que o faça nos termos que a lei a estabeleceu, pena de ficar o ato
inquinado de vício de legalidade suficiente para provocar-lhe a invalidação"
(Direito Administrativo, 5ª ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999, p. 76).
Nulo,
portanto, quaisquer efeitos que dele decorreram, tendo como insubsistente a
penalidade a ser aplicada ou aplicada.
Como
dito no início deste parecer, a ideia aqui é contribuir com o bom debate, mas
destaco a importância da observância dos atos praticados pelos agentes
públicos, sobre tudo aqueles esculpidos pelos princípios da administração
pública (art. 37 CFRB), sob pena de inviabilizarmos o que mais buscamos no
trânsito em nosso país, que é a proteção à vida e incolumidade física das
pessoas (§ 1º do art. 269 CTB).
Autor:
Emerson Luiz Andrade
Especialista Meio Ambiente, Gestão e Segurança no
Trânsito
Bacharel em Direito
Professor colaborador – UNIFEBE – Cursos de pós
graduação.
Sargento da PMRv-SC (RR)
Professor titular das disciplinas Sistema de Transporte
e Logística Univali/Itajaí (2006-2009);
Membro da Câmara Temática de Esforço Legal – CTEL
CONTRAN (2017-2020);
Autoridade de Trânsito Municipal em Gaspar (2008-2011).
Palestrante e Consultor.
EA – Trânsito & Assessoria.
[1] PRADO, Adirson Barbosa do. Lavratura de auto de infração por agente de
trânsito policial militar ou funcionário civil, sem o uniforme e de folga.
Disponível em: http://www.ceatnet.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=117.
Acesso em: 18 fev. 2010.
[2] PRADO, Adirson
Barbosa do. Lavratura de auto de
infração por agente de trânsito policial militar ou funcionário civil, sem o
uniforme e de folga. Disponível em: http://www.ceatnet.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=117.
Acesso em: 18 fev. 2015.
[i] DEZEM, Guilherme Madeira. Da Prova Penal.
1ª edição. São Paulo: Millenium, 2008. P. 134
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